Futuro ancestral: um novo olhar para o Design Cultural

Anna Borges |  @aztecadesign | 19 abril, 2023



Recentemente me deparei com esse conceito e minha primeira reação foi: como dois termos que parecem antagônicos por si mesmos podem estar juntos? Se você também não conhecia essa expressão e acredita ser uma ideia improvável, eis aqui um convite para pensar diferente! (isso é uma reflexão, não um slogan!). 
Ancestralidade é a relação que temos com a história e as tradições das nossas raízes, que pode ser expressa em termos de herança cultural, social e genética. São práticas, comportamentos e valores que herdamos de nossos antepassados e que fazem parte da nossa identidade. É uma conexão com nossa essência, com tudo aquilo que nos compõem como seres humanos, sociais e culturais.
Por outro lado, futuro é a ideia do que ainda está por vir, uma noção de possibilidade, uma visão, uma promessa. É uma concepção do tempo que nos leva a projetar e imaginar cenários diferentes, que podem ser mais ou menos desejáveis. O pensamento de futuros (future thinking) é uma abordagem que vem crescendo nos últimos anos, como uma proposta de se usar novas lentes para enxergar mudanças possíveis, questionar o passado e criar novas perspectivas sobre o mundo.
Embora possam parecer opostos, esses conceitos combinados formam uma perspectiva ousada de construir um futuro mais sustentável e justo a partir do resgate e valorização dos conhecimentos, práticas e crenças de nossos antepassados. Em outras palavras, futuro ancestral" é uma forma de pensar o futuro a partir da conexão com as raízes culturais e históricas de um povo. Olhando mais de perto, com a devida atenção, nem é tão impossível assim!
No Brasil, a origem dessa abordagem remonta às culturas indígenas e africanas, que há séculos utilizam esses conhecimentos originários para preservar a natureza e as relações sociais. Ao olhar para a ancestralidade como uma forma de buscar inspiração e orientação, essa nova lente de futuro busca valorizar a diversidade, preservar as tradições, além de combater o apagamento de culturas não hegemônicas.

Se há um futuro a ser cogitado, esse futuro é ancestral, porque já estava aqui. Assim como os rios, esses seres que sempre habitaram os mundos em diferentes formas”.

É com essa analogia que o líder indígena Ailton Krenak provoca importantes reflexões em seu livro homônimo (Futuro Ancestral, 2022), questionando a narrativa de uma linha do tempo linear e propondo uma reconciliação com nossos lugares de origem, para se construir um mundo ciclicamente sustentável. Krenak também enfatiza a importância da preservação das culturas indígenas e de seus conhecimentos tradicionais, que podem oferecer alternativas para uma convivência mais harmônica com a natureza. 
Esse pensamento também é recorrente na obra do ativista e indigenista norte-americano Vine Deloria Jr., que em sua teoria Indigenizing the Future", propôs uma mudança fundamental na forma como as pessoas, em particular as pessoas não indígenas, pensam sobre o futuro. O autor acreditava que as concepções de tempo e espaço, e de como as pessoas se relacionam com o meio ambiente, são profundamente influenciadas por esses povos originários, que valorizam a interconexão e a interdependência entre todas as coisas. Para ele, construir um futuro sustentável e justo, passa por incorporar esses valores em nosso planejamento e na tomada de decisões.  

A indigenização é um conjunto de práticas e de reconhecimento de que os antigos modos de vida contêm conhecimentos úteis para nossas vidas aqui e agora”.

E o que essa abordagem tem a ver com o Design Cultural?
A abordagem de futuros ancestrais valoriza a diversidade cultural e reconhece a importância das tradições e dos conhecimentos ancestrais para o desenvolvimento de práticas sustentáveis a longo prazo. A partir dessa perspectiva, o design é visto como uma habilidade para direcionar essa transformação, buscando uma descontinuidade sistêmica para os desafios do mundo contemporâneo. Essa descontinuidade é oportunizada por inovações em nível local, potencializada por mudanças de comportamento social.
Já falamos aqui num artigo anterior, sobre o pensamento do Design Decolonial, que passa pelo esforço de repensar velhos conceitos, buscar novas respostas e outras mentalidades. A de(s)colonização implica numa mudança fundamental na forma de pensar e fazer design: faz um apelo, inevitável, a uma prática mais inclusiva, igualitária e humana.
Da mesma maneira, quando falamos de Design Cultural valorizamos uma abordagem que leva em consideração a cultura local, as tradições e a história do lugar onde um produto ou serviço será utilizado. É um tipo de abordagem que busca uma conexão mais profunda com a comunidade em que uma marca está inserida e tem como objetivo promover a pluralidade cultural.

Trazer o pensamento indigenista para o campo do Design Cultural nos parece uma contribuição fundamental para o Brasil atual, quando o objetivo é criar soluções mais conscientes e responsáveis para as necessidades da sociedade e do meio ambiente. 

Por indigenização entende-se o processo de naturalizar os sistemas de conhecimento indígena e torná-los evidentes para transformar espaços, lugares e corações". Isso não significa substituir o conhecimento ocidental pelo conhecimento indígena, não estamos defendendo uma espécie de aculturação às avessas! Significa estar aberto a compreender o conhecimento e as abordagens indígenas como um saber colaborativo, eliminar preconceitos e estereótipos, se reconciliar com nossa história, fazer reparações e melhorar as relações entre indígenas e não indígenas para criar um futuro melhor para todos. Infelizmente, ainda temos um longo caminho a percorrer quando se trata de respeitar e valorizar as visões de mundo indígenas. 
É nesse sentido mais amplo que a abordagem de futuro ancestral pode contribuir significativamente para que as marcas busquem soluções socialmente conscientes. Muito além de pensar a cultura da empresa, ou o valor cultural agregado a um produto ou serviço, o pensamento do Design Cultural considera o entendimento de processos socioculturais a partir de ações de baixo para cima. 

Ao se conectar com as tradições e a sabedoria dos antepassados, marcas que ativam a cultura e a inovação social devem ser capazes de criar soluções que respeitem as diferenças e as particularidades das comunidades para as quais trabalham. E isso se faz a partir de um vínculo emocional, orientado por um propósito claro e engajador.

Nesse contexto, como afirma Danilo Vaz, o Design Cultural serviria como fonte de conhecimento científico (prático e teórico) para grupos de pessoas trabalhando em prol de mudanças sociais sustentáveis e que buscam uma abordagem interdisciplinar e robusta para a implementação, avaliação e iteração de suas práticas." 
Para construir valor no mundo hoje, é preciso reconhecer que as diferentes culturas influenciam as percepções, comportamentos e necessidades das pessoas. Isso é fundamental para o desenvolvimento de produtos e serviços que considerem a coexistência dessa diversidade, contribuindo para um mundo mais inclusivo e sustentável, que valoriza e respeita as diferentes formas de vida e de expressão.
Se analisarmos de forma prática, essas ações já vêem acontecendo, embora ainda limitadas a certos rótulos. É comum as pessoas associarem questões culturais e sociais à ONGs e entidade filantrópicas, não-governamentais. Mas o debate recente sobre a importância das ESG e a construção de ecossistemas demonstra como cada as vez mais a marcas precisam se comprometer com tais questões.
Ouvimos muitos discursos sobre cultura de marca, sobre valores e crenças que definem propósitos que não se consolidam na prática. Marcas que vivenciam a cultura, que assumem esse compromisso, buscam provocar mudanças de impacto positivo, gerar transformações de longo prazo e dar voz aos de baixo". É preciso colocar o cultural na equação da inovação para gerar valor não apenas para as marcas, mas para a sociedade como um todo.
Se nosso futuro é ancestral, que conhecimentos precisamos resgatar para criar um mundo mais sustentável e consciente? Incorporar o pensamento do Design Cultural ao nosso processo é um desafio que faz parte da visão de mundo que pretendemos alcançar. Mas esse será um tema para uma próxima conversa!






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Referências
Futuro Ancestral. Ailton Krenak (2022)
Indigenizing the Future: Why We Must Think Spatially in the Twenty-first Century Daniel R. Wildcat (2005)
Design para inovação social e sustentabilidade. Ezio Manzini (2008)
Design cultural como ferramenta para alcançar inovação. Maico Carlos (2018)
Design Cultural - O Campo Científico Necessário para o Século XXI. Danilo Oliveira Vaz (2018)


​​​​​​​Imagem de capa: Retrato de  indígenas da Amazônia com pinturas rituais Imagem de Artem, Generate AI ©Adobe Stock.

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